Tema: “Indígenas, camponeses e guerrilheiros: re-existências na fronteira amazônica”
Apresentação
Seguimos no front que é a Amazônia, seguimos na fronteira reinventada desde dentro, segundo as perspectivas das lutas sociais, como o centro dos embates, da resistência, o lugar dos combates físicos e epistêmicos, cujas transformações podem ter força de impacto além front. E aqui, como parte destes embates, o Festival Internacional Amazônida de Cinema de Fronteira, em sua segunda edição, pretende colocar em foco as lutas travadas por indígenas, guerrilheiros e camponeses e a realidade de violações de direitos constituída pelo processo de ocupação da Amazônia no contexto da Ditadura Militar no Brasil.
O FIA CINEFRONT II será composto pela mostra de obras fílmicas em que indígenas, camponeses e guerrilheiros são apresentados como protagonistas intelectuais e políticos de lutas de resistência que possuem em comum um caráter anti-colonial, mas que as vezes conflitam entre si, sendo um dos objetivos do festival provocar visibilidades aos conflitos na fronteira e estimular reflexões sobre possibilidades de construção de alianças emancipadoras entre os sujeitos em luta.
Assim o FIA CINEFRONT reafirma seu compromisso com cinema de fronteira enquanto arma de descolonização, de combate a colonialidade, isto é, daquela mentalidade e das ferramentas institucionais que reproduzem-legitimam a desigualdade social e sustentam privilégios de grupos sociais que se julgam superiores quando, pela exploração do trabalho, destruição dos modos de vida e expropriação dos recursos naturais, condenam outros grupos sociais a uma existência de humanidade roubada.
Neste ano o FIA CINEFRONT homenageia mais um realizador de cinema de fronteira: Vincent Carelli, indigenista, documentarista, fundador do Vídeo nas Aldeias e diretor de filmes como "Ninguém come carvão" [1991] e "Corumbiara" [2009], que, respectivamente, denunciam a destruição da floresta pelas siderúrgicas no Pará e Maranhão e o massacre de índios na Gleba Corumbiara, em Rondônia.
Autor de uma obra que se constitui como um importante registro histórico sobre a Amazônia, Carelli esteve pela primeira vez na região em 1969, em uma visita aos Xikrin do Catete. Foi uma viagem transformadora. Em seguida, entrou na Funai por concurso público de indigenista. Em meio a ditadura a violência do desenvolvimento contra os povos indígenas, Carelli deixou o estado para unir-se às resistências e lutas do movimento indígena e indigenista. Como fotografo, realizou uma das primeiras grandes cobertura jornalística sobre a guerrilha: junto dos jornalistas Palmério Dória, Sérgio Buarque e Jaime Sautchuk, revelaram na revista História Imediata o que a ditadura queria esconder: o massacre do Araguaia.
Foi Carelli quem encontrou a primeira fotografia que se tornou pública de Osvaldão, o líder mais conhecido do movimento guerrilheiro, nos arquivos do Clube de Regatas do Botafogo. O filme sobre a vida do comandante guerrilheiro, “Osvaldão” [2015], longa-metragem produzido por Renata Petta e dirigido por Vandré Fernandes, Ana Petta, Fabio Bardella e André Michiles, honrosamente estará na abertura do FIA CINEFRONT II.
Nos anos 1980, Carelli passou a acompanhar os “Gavião” e a luta do cacique Krohokrenhum para a defesa do território. Registrou a disputa e a negociação do conflito entre indígena e camponeses na Terra Indígena Mãe Maria, e a resolução do conflito a partir da sofisticada diplomacia de Krôhôkrenhum e o sindicalista Almir Ferreira Barros, do sindicato de São João do Araguaia. Barros faleceu em dezembro do ano passado e o festival presta uma homenagem a sua vida e luta em favor dos povos do campo. A trajetória do trabalho de Carelli, portanto, cruza os diversos polos de resistência que emergiram no sul e no sudeste do Pará nos últimos 40 anos. Rever esse caminho junto com o público da região é uma chance única de se repensar a história da resistência, e vislumbrar, para o futuro, novas possíveis pontes, articulações e união.
As lutas de resistência, como lutas de descolonização, que levaram a reinvenção da fronteira como lugar de vida e protagonismos políticos de diferentes sujeitos amazônicos na defesa de suas comunidades e grupos sociais diante do “avanço do capital”, que podem ser unificadas como lutas emancipatórias, serão tematizadas também durante a apresentação da atração internacional do festival, o filme “A Respeito da Violência”[2014], sobre a obra do psicanalista Frantz Fanon. O filme, dirigido pelo sueco Göran Hugo Olsson e narrado pela cantora Lauryn Hill, é baseado nos escritos de Fanon sobre o colonialismo Europeu na África e apresenta a perspectiva dos povos colonizados nas suas lutas por independência.
Buscando criar pontes, articulações e união que fortaleça o protagonismo cinematográfico no front amazônico, além de apresentar obras selecionadas de diretores da região e convidados, o festival nesta edição abrirá espaço para sessões especiais de socialização de festivais parceiros [Festival de CinemaCurtaCarajás e FestivalInternacional deCinemado Caeté], com filmes e debates sobre obras cinematográficas que circulam pela Amazônia, além da promoção de oficinas que estimulem e ampliem o protagonismo de produtores locais e o uso do cinema como arma política contra a colonialidade.
Espera-se que o conjunto dessas obras, assim como o trabalho documental do indigenista Vincent Carelli, inspirem a todos espectadores a refletir sobre a Amazônia como fronteira global do capitalismo e do colonialismo, marcada por conflitos e possibilidades. Que o cinema nos ajude a perceber, assim como Fanon no livro Os Condenados da Terra, cujos trechos são narrados no filme Sobre a Violência, que “a descolonização, que se propõe a mudar a ordem do mundo, é um programa de desordem absoluta” e um processo histórico, complexo e diverso em situações de violência e resistências, que na “desordem” das vitórias das lutas e movimentos sociais que avançaram na Amazônia se assinalam outros mundos possíveis.
Assim, acreditando, como Fanon, que “toda descolonização é um triunfo”, o FIA CINEFRONT II quer ser um espaço para se pensar os triunfos e as derrotas desse processo histórico, expor as diferenças para, nas diferenças, todos aqueles e aquelas que enfrentam esse processo histórico para conseguir a emancipação e “mudar a ordem do mundo”, camponeses, indígenas e guerrilheiros, possam se encontrar para enxergar o que os aproxima mais do que, nessa “desordem absoluta”, os distancia.
Portanto, comemoremos o cinema como triunfo da luta pela descolonização:
Viva o Cinema de Fronteira!
Vida longa ao FIA CINEFRONT!
Comissão Organizadora:
Coordenação Geral: Evandro Medeiros [Proex-UNIFESSPA]
Curadoria: Felipe Milanez [CECULT – UFRB, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia]
Produção Artística e Fotográfica: Alexandra Duarte [Trama Teia Produções]
Cobertura Jornalística: Francisco Chagas e Flávia Lisboa [Marabá Notícias]
Coordenadores de Festivais Parceiros: Francisco Weyll e Ivan Oliveira